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    Sexta, 17 Maio 2019 13:30

    D. Adélia, a matriarca de São Gotardo

    Escrito por José Eugênio Rocha

    Sua memória, sempre certeira, não deixa escapar nem os mínimos detalhes. Ela reconstitui fatos ocorridos a 70 ou 80 anos atrás com a mesma naturalidade e desenvoltura de quem recorda um evento ou uma conversa ocorrida ontem ou na semana passada. D. Adélia é testemunha ocular de um período que atravessou praticamente toda a história de São Gotardo, dos primeiros anos de emancipação, dos tempos dos Coronéis, passando pela 2ª guerra mundial, Getúlio Vargas, Ditadura militar... até os dias de hoje. Assistiu às principais transformações, não apenas da cidade que adotou como sua segunda terra natal, mas do mundo inteiro, do rádio, passando pela Tv aos Smart phones de hoje. Recém casada com um jovem empresário de São Gotardo, Clarimundo Alves Soares, D. Adélia veio de Dores do Indaiá com o desafio de se adaptar à nova terra e constituir família. Aqui ela criou seus nove filhos. Ao todo são 19 netos e 15 bisnetos; o 1º tataraneto já está a caminho.

    Quando D. Adélia aportou nas terras do Confusão a cidade contava não mais que 1.500 habitantes( cerca de 18 mil residiam na zona rural), e 250 casas. Instalada a pouco, a energia elétrica ainda era uma novidade. Ao longo das oito décadas seguintes, a partir de 1937, D. Adélia participou ativamente da vida social da cidade. Ela continua morando ali, na praça Sagrados Corações, na área central da cidade. Acompanhada pelo filho Márcio, ela nos recebeu em sua casa, onde gravamos a entrevista que se segue.

    Era o ano de 1937 quando D. Adélia chegou a São Gotardo. Naquela época, uma cidade de poucas ruas, quase um vilarejo. A Igreja matriz, lembra ela, ainda estava em sua fase inicial de construção. Recém casada, a jovem que mal completava os 20 anos de idade, aportava pela primeira vez na cidade que abraçou como sua terra definitiva. Mas foi em sua cidade natal, Dores do Indaiá, que conheceu seu futuro esposo.

    Eu casei com um moço daqui , por isso vim para São Gotardo. Eu conheci ele em uma festa de Dores do Indaiá. Eu me formei lá. A nossa escola Normal(o curso de pedagogia da época) era cópia fiel por dentro e por fora do Instituto de Educação de Belo Horizonte.

    Então foi em Dores que a senhora conheceu Clarimundo, seu futuro esposo... 

    Sim, nos bailes e nas festa de carnaval. Dores era muito alegre, muito cheia de festa. Os rapazes iam todos pra lá porque, com as escolas, tinha moça demais e pouco rapaz; então a gente mandava convite, e enchia o salão de festa da Escola Normal e o clube. As nossas festas eram maravilhosas.

    Quais foram suas primeiras impressões quando chegou por aqui. Como era a cidade?

    São Gotardo era quase um arraial; era pequenina. Depois é que ela foi crescendo. Tinha pouca água, luz fraquinha, poucos habitantes; a roupa era lavada ali no córrego(Confusão). Eu gostei daqui. A nossa igreja era daquelas antigas, lá na praça São Sebastião. Quando eu cheguei aqui a Igreja Matriz ainda estava em construção.

    A senhora se considera uma mulher religiosa?

    Fui presidente do Apostolado da Oração. Sempre frequentei e ajudei nas tarefas da igreja, e sempre tive uma amizade muito grande com os padres, principalmente com o Dom José Lima. Ele foi muito importante aqui pra São Gotardo: reformou a Santa Casa, essas casas de misericórdia, nosso ginásio, nossa igreja, tudo na cidade foi ele.

    Sr. Clarimundo, seu marido sempre revelou um tino, uma veia empresarial.

    Ele era dessas pessoas pra frente. Fundou o primeiro e único cinema da cidade( a primeira sala de exibição foi instalada em galpão no fundo de sua casa. Posteriormente foi inaugurada uma grande sala ali na praça São Sebastião). Meu marido abriu vários pontos de comércio, como bar, mercearia, Posto de gasolina. Ele era vice presidente do clube social da cidade. Ele adorava São Gotardo. Ele fez tudo de bom e eu gostava disso nele, e também eu gostava do progresso, gostava que a cidade fosse pra frente .

    Como ele era um empresário de influência na cidade, os dois partidos políticos da época convidaram ele pra ser prefeito, mas ele nunca quis se candidatar. Um dia ele me perguntou: Você quer ser a primeira dama? E u disse a ele que não fazia questão, que estava nas mãos dele decidir.

    A senhora gostava de política?

    Sim . Eu acompanhava tudo. O prefeito Bento Ferreira, por exemplo, era meu compadre e amigo da família. Ele era farmacêutico, e quando assumiu a prefeitura deixou a farmácia que era a sua fonte de renda. Teve uma vez que ele passou por um momentos de dificuldade por isso, e o Clarimundo bancou as des-pesas dele e da família por um ano. Foi um grande prefeito e ajudou muito no progresso de São Gotardo; construiu a igreja, abriu muitas ruas...

    Qual o papel da mulher na sociedade? 

    A mulher tem os dois direitos dela, não é? Para as que são formadas, têm diploma, elas também têm a mesma capacidade do homem. Podem ser professoras, diretoras de escola. E o outro direito delas é responsabilidade de cuidar da casa. Mas, por exemplo, ela não pode descuidar da casa, em favor da profissão que tem fora, não é? Primeiro o lar, os filhos, o marido. 

    Lá em Dores do Indaiá, as mulheres davam aulas por necessidade financeira. Lá, as famílias mais tradicionais e com melhor poder aquisitivo não aceitavam que filhas e esposas trabalhasse fora, como professora. Quando eu cheguei a São Gotardo, como era formada, me convidaram para dar aula ou assumir o cargo de diretora de escola, mas meu marido não aceitou.

    Mas a senhora queria trabalhar fora...

    Ora, mas demais da conta. Era o meu sonho.

    Aqui em São Gotardo era comum as mulheres trabalharem nas escolas, mesmo não necessitando de salário, não é isso?

    Isso mesmo. Quando cheguei aqui vi que as mulheres eram muito mais independentes que lá em Dores do Indaiá. As moças de família rica, todas elas trabalharam fora de casa. Vi que era diferente. Quando minhas duas filhas( primogênitas) se formaram, meu marido dizia que era melhor elas ficarem em casa, não lecionar. Mas eu fiz questão de garantir que com elas seria diferente. Que elas iriam poder trabalhar fora. Eu dizia: elas vão fazer novas amizades... não é pelo dinheiro, é pra sair de casa; não é mesmo? O que eu não pude fazer fora, eu fiz em casa. Fiz questão de garantir que todos os meus filhos tivessem o diploma universitário, que fossem independentes na vida.

    Como era ser a esposa de um dono de cinema?

    A primeira vez que abriu o cinema( a cerca de 50 anos atrás), nós fomos ver o filme e tínhamos o nosso lugar marcadinho. O cinema exibia filmes do primeiro ao último dia do mês; era diariamente. Primeiro foi aqui no fundo de casa, depois que abriu lá( na praça São Sebastião). Ao lado do cinema, no prédio da esquina( da rua Bento Ferreira dos Santos com a praça) era um bar em baixo e o clube social em cima. Era um bar muito bom, bem frequentado, era o ponto de reunião da cidade. Toda vida o Clarimundo foi desses empresários pra frente, queria ver a cidade melhorando, crescendo. Pra você ver, uma cidade igual a São Gotardo com cinema diariamente, não era fácil. Enquanto outras cidades demoraram a construir cinema, São Gotardo já tinha o nosso.

     

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