
Nos anos 60, eu li em algum lugar que o corpo fala, que memorizei como sendo um livro de Rollo May e descubro, ao pesquisar para escrever esta crônica, que a nossa mente nos engana. O livro, lançado em 1980, obteve enorme sucesso e inúmeras reedições, é do Psicólogo Pierre Weil e Roland Tompakow.
A gente era mais simples, apenas corpo e alma. Depois veio a mente e sua divisão. Passamos a saber que temos também um subconsciente, graças a Freud e Jung.
A vida era mais simples e o médico de família ou o farmacêutico batia o olho e dizia o que estávamos sofrendo. Agora, existe especialista em mão, fundo do olho e não sei o que mais.
Deixo as divagações e volto para o meu corpo. Ele vinha mandando recados, sob a forma de cansaços, de sono e pequenas dores. Eu seguia num ritmo frenético de diretor do Sindifisco Nacional, terminando o dia com tarefas pendentes, de voluntário para a elevação de escolaridade, de promotor da poesia, da cultura da paz, colaborador do Jornal Daqui.
Até que ele disse: para! Eu só consegui dirigir até o Café da Terra, na volta para BH. No dia seguinte, precisei de ajuda para levantar da cama e fomos para o hospital da Unimed, superlotado, para um dia inteiro de espera, exame, espera e nada de resposta.
Após as 18h da segunda feira, ainda faltava uma ressonância magnética, que dificilmente seria feita neste dia, mas, se eu saísse de lá, teria que reiniciar a via crucis. Fui para o centro de enfermagem, apinhado de gente, passar uma “longa jornada noite a dentro” numa poltrona reclinável.
Registro que, de todos os médicos e médicas, apenas um jovem foi frio, insensível e não atencioso, e parabenizo os demais pelos esforços em amenizar os problemas dos pacientes.
A última orientação foi que eu esperasse, pois me chamariam para o exame. Daí a pouco, iniciaram um soro na veia.
Neste cenário estranho, onde deveria reinar o silêncio, criei mentalmente uma longa peça teatral de moderado terror, tendo ao centro uma senhora bem vestida, com três voltas de pérola no pescoço e que, desde a triagem, manifestava em alta voz, sua revolta: “Eu tô com fome! ...Vou fazer um BO e mandar prender vocês todos!...Quero mijar!...
E eu ficaria esperando até o fim dos tempos, se não fosse a Dodora ir perguntar. Daí fomos encaminhados para o exame, depois informados que ele não poderia ser realizado, algum tempo depois encaminhados para uma consulta e escolhermos fazer o exame fora.
Saí com uma receita pesada e o diagnóstico de que estava com pneumonia e covid, o que seria quase uma sentença de morte há algum tempo atrás.
Eu não sentia nada, a não ser uma dor forte na região da cintura, que dificultava meus movimentos. Neste momento, passei sete dias sonolento e tenho a oportunidade de usar a resposta fantástica do Chico Anísio ao Jô Soares:
“Medo de morrer? Não. O que eu tenho é pena...”
Ele e o Wado eram os beques do time do União, que fez partidas memoráveis contra o Sgryma do João do Samaria e do Paulo do Gabrilin, o primeiro um atacante completo e o Paulo com um chute fortíssimo, rivalizando com nosso ataque, com o craque Tarcísio do Lipran e o Luiz Roberto que lembrava o Evaldo do Cruzeiro ou o Dida do Flamengo. Tenho a flâmula com o genial slogan: “Adão não se vestia porque o Samaria não existia”.
Pois é, o Wado tinha furado a fila na lista que ele levava para os velórios e abordava quem estava mal de saúde e dizia: “Ei, fulano, se cuida, pois você é o próximo da lista!”
O Humberto do Ciro Franco tinha chegado antes e disse para São Pedro: “Não vou entrar agora, não, porque gente de São Gotardo não chega aqui sozinho, vou esperar o Julinho para entrarmos juntos.”
Um pouco antes tinha chegado a minha amiga Abadia, do Curso de Contabilidade no Prédio Amarelo, amizade que se estendeu a BH, onde a reencontrei. Quando ela ouviu a prosa do Humberto, falou que também ia esperar e ele contou que tinha sido meu colega no Afonso Pena.
Meu primo merecia estar numa das tragédias de Shakespeare, num dos romances de Gabriel Garcia Márquez ou numa crônica do Nélson Rodrigues, pela farsa de que foi vítima e que o impediu de voltar a nossa terra durante anos. Situação enfrentada por ele com a dignidade do silêncio, pois eu, pelo menos, nunca ouvi dele nada a respeito.
Ele tinha um humor fino, uma presença de espírito diferenciada e bebia com elegância, chegando inteiro ao final de nossas festas ou farras.
Zé Eustáquio, meu irmão, foi à nossa terra e, no sábado, morreu alguém, o que se repetiu no sábado seguinte. O Julinho, ao se encontrar com ele, no domingo de manhã falou: “Zé, não é por nada não, mas você podia espaçar um pouco suas vindas...”
Ele teve a felicidade de viver um grande amor com a Rita Londe, bem humorada e positiva como ele, que merece a gratidão de todos nós que o estimávamos pela dedicação e carinho com que trilhou junto a ele as sendas e veredas de seus últimos passos por aqui.
Antes de terminar, devo registrar que a minha defesa tinha também o Luiz Fernando, da Aída, o Marquinho, meu irmão, e a gente poderia lançar mão do Fernando da Ester, o que não invalida o título desta crônica, pois a saudade dos dois que já se foram é muito grande.
Não posso deixar de registrar uma grande lição que recebi dele. Comentei com ele que o papai estava perdendo dinheiro no Armazém, pois vendia fiado e recebia pelo valor do dia da compra, quando o freguês vinha pagar, depois do dia da poupança, em tempos de inflação galopante; ele me disse: “O Padrinho está ganhando anos de vida...”.
Descansem em paz, Abadia, Humberto e Julinho. Nossa vida fica mais triste sem vocês.
Eu vivi em São Gotardo na infância e, no início da adolescência, sai para o Seminário dos Dominicanos, em Juiz de Fora, indo depois para Belo Horizonte, onde estou desde 1964. Passei a ser um “estudante de fora”. Desde então tenho visão de mundo e ideias fora das trilhas por onde andam a maioria dos familiares e conterrâneos. Uma delas é valorizar pessoas discretas, que passam mais suavemente pela vida e tornam mais leve a vida dos que têm a felicidade de conviver com eles.
Destaco, nesta crônica, o sr. João Olímpio de Resende, o Joanico que eu sempre via como se tivesse acabado de sair do banho. Ressoam ainda nos meus ouvidos as referências elogiosas que a ele faziam sempre meu pai e minha mãe.
Nasceu nas Guaritas e tinha uns 10 irmãos, todos habilidosos o que é uma característica dos Resendes. Adalberto foi o primeiro mecânico de automóveis da nossa cidade, Adolfo, vendedor de joias e contador de piadas e causos, : Alberto era exímio tocador de violão, Catarina foi uma ótima professora, nos preparava em dois meses para o exame de admissão ao ginásio, um vestibular entre o grupo e o ginásio, Heitor teve uma casa de material de construção, em BH, Inocêncio teve um hotel, Joanico tocava gaita muito bem e Jane, sua filha, tocava e ensinava acordeom, José Olímpio (Juca) foi o pai dda Conceição do Dézinho, craque do meio de campo do Sparta, Juvenal era o pai da Iracema, esposa do Téo, pelo que merece meu profundo respeito, Leda e Olegário, que foi taxista em BH e era uma referência para os sangotardenses em BH, Olímpia foi dona da Gráfica Orion, em BH, e Otávio foi um especialista em construir carros de boi.
Pela descrição sintética, vemos o dom para a música e que sempre foram bons comerciantes, o que foi passado, por exemplo, para o Jáder e dona Lea, que também ensinou as artes do bordado a inúmeras jovens.
Adolfo queria voar e não sabia como até que teve uma brilhante ideia. Prendeu 6 urubus, deixando-os sem comer por 4 dias, amarrou-os num grande couro de boi, adaptou pequenas varas de pescar sobre cada um deles e, do quintal da fazenda levantou voo até o Salto, de onde retornaria triunfante para o Arraial da Confusão. Quando queria mudar de direção, abaixava a carne até os urubus deste lado. Foi um sucesso pela metade, pois, quase no fim da primeira etapa, um caçador assustado com o estranho bicho voador atirou no tapete voador, derrubou o balaio de carne, atrás do qual voaram os urubus, impedindo a conclusão deste feito memorável, que precisava ser levado ao conhecimento da humanidade.
Quem sabe esta crônica mude os livros de história das invenções. Viva São Gotardo, viva Joanico e seus irmãos!
Luiz Sérgio, 26 de janeiro de 2025 - Com a colaboração do Geninho, do Reinaldo e do Marcinho, meu irmão.
É nestas árvores que os passarinhos vêm dormir, mas não vêm direto, não. Eles param nas árvores do quintal do Chico Moço, a maioria nas jabuticabeiras e os retardatários nos pés de fruta menores. Repetem isso toda manhã: antes de sair cada um para o seu lado, passam nestas árvores. Dizem que é para programar o dia e, ao final, contar o que aconteceu, num pia-pia fantástico.
A rodoviária está vazia, pois já passaram os ônibus vindos do Triângulo no rumo da capital. Cessou a disputa dos anunciantes,” bar de baixo, bar de cima,” chamando para o almoço no Bar Sparta ou no Bar do Vicente Maia.
Mais tarde, o Nilzo Leopoldino, dono do barzinho da rodoviária, colocará música clássica para a praça.
Passa o Ribite fantasiado de índio, anunciando o filme de Tarzã que lotará o Cine Serrano, os adolescentes embevecidos com a roupa sumária da Jane e as mocinhas encantadas com o Johnny Weismuller.
Começo a pensar nos apelidos da nossa gente, provocado por uma tia da capital, que dizia: “Pode alguém ter o nome de Bijeto?! Você pode não ter conhecido, mas na minha época tinha.” Como teve o Reminton Range. A família da dona Gelcira bateu o recorde: Biriba, Niquita, Batata, Bié e Buda!
Primo Levi, um sobrevivente dos campos de concentração nazista, de quem seu sou fã porque não se tornou uma pessoa amarga ou um escritor rancoroso, fala de um código de conduta invisível a determinar a maneira de agir das famílias, dos clãs familiares, dos grupos religiosos ou de outros tipos, dos habitantes de uma cidade, Estado ou País.
Uma das maiores reações coletivas espontâneas que eu, nos meus 10 anos, presenciei foi a indignação dos jogadores e da torcida do Sparta quando um jogador do time visitante fez uma falta desleal, daquelas de quebrar a perna, no Zé do Baiano, nosso maior atacante de todos os tempos e que se comportava como o Messi. Foi uma briga geral, resultado de uma raiva quase santa.
Aproveito a proximidade das eleições para homenagear nossa prefeita e vereadoras pela coragem de participar da vida pública, apesar da multiplicidade de tarefas que ainda recaem sobre seus ombros.
Estendo meu aplauso às que invadiram as barreiras invisíveis das profissões consideradas masculinas. Até um período recente, as mulheres dependiam da autorização do marido para abrir uma firma. Era natural serem costureiras, professoras e enfermeiras.
As mulheres Só puderam votar a partir de 1932.
Em 1962, não precisavam mais da autorização do marido para trabalhar fora de casa, passaram a ter o direito a herança e poder pedir a guarda dos filhos na separação. Continuavam, no entanto, a ser consideradas propriedade do pai ou do marido. O normal era permanecerem em casamentos infelizes e até mesmo abusivos. Com a lei do divórcio, de 1977, isso começou a mudar, intensificando as mudanças iniciadas com a chegada da pílula anticoncepcional nos anos 60.
Durante muito tempo as mulheres não podiam jogar futebol, pois a lei proibia a prática de esportes inadequados à sua natureza. Até o início deste século e milênio, o homem podia pedir a anulação do casamento sob a alegação de que a mulher não era virgem.
Maridos que assassinavam suas mulheres normalmente ficavam livres sob a alegação de defesa da honra e na maioria dos casos a mulher era condenada também por seus pais e irmãos.
A caminhada para um mundo melhor é longa e difícil, mas depende das mães e educadores prepararem as crianças e os jovens para uma cultura (código invisível de conduta) de paz, compaixão e solidariedade. As eleições que se aproximam é um bom momento para a escolha de representantes progressistas, comprometidos com uma sociedade mais justa. Cada um de nós é responsável pelos políticos que tantos criticam. Tomara que você possa seguir aplaudindo a vereadora ou vereador e prefeito que escolheu.
A melhor forma de encerrar esta série de artigos é ouvir, depois do Vette, o Pedrinho, o Oswaldo e o Sérgio Bueno e para nosso editor. Confesso que estou com a alma plena de gratidão e felicidade.
“Prezado Luiz Sérgio, Apreciei muito seu artigo sobre nosso saudoso padrinho e tio Clarimundo. Permita-me associar a esta homenagem expressando meus vivos sentimentos de admiração, gratidão e respeito a um homem alegre, discreto e realizador, sábio na sua simplicidade. Soube construir uma bela família e um exemplar estilo de vida. Luiz, continue escrevendo sempre, pois tio Clarimundo mereceu e merece.
Cordialmente, Pedro Soares
Mensagem do prof. Oswaldo Bueno, que foi transmitida pelo A. Sérgio Bueno:
“Como foi bom apreciar estas maravilhas de textos do Luiz Sérgio sobre o pai dele, Sr. Clarimundo Soares, de quem me lembro muito bem e que olhávamos como exemplo de homem muito trabalhador e pai de família exemplar! Além disso, era o dono do cinema, que era uma das janelas, naquele tempo, para o vasto mundo exterior! Transfira a ele meu abraço.
(Prof. Sérgio Bueno) Que texto emocionante sobre seu pai. Feliz do homem que deixa para os filhos imagens tão belas e sentimentos tão nobres. No caso de Seu Clarimundo, essas boas lembranças não ficaram apenas com os filhos, mas com todas as pessoas que tiveram o privilégio de com ele conviver.
Lembro-me perfeitamente bem dele e todas as vezes que visito São Gotardo e olho para o lugar que minha mãe chamava de “O armazém do Clarimundo”, tenho uma sensação boa com a lembrança dele e muito orgulho de contar a amizade dos filhos dele.
Viva Seu Clarimundo! - Antônio Sergio Bueno
E, finalmente, a nota do nosso Editor, que me levou a rememorar a passagem de meu pai por nossas vidas:
“Precisávamos resgatar a história de seu pai, por quem sempre nutri admiração, não sei se pelo cinema ou pela pessoa que ele era. Fico muito feliz em compartilhar com você este resgate aos nossos leitores do Jornal Daqui. Aguardamos os próximos textos.”
Zezé, do jornal Daqui"
Falarei agora do meu saudoso pai, Clarimundo Soares, como negociante e empreendedor, num País em que “o sucesso é ofensa pessoal” (Tom Jobim).
Um jovem simples e dedicado conseguiu se tornar um dos maiores comerciantes de São Gotardo. Com o apoio de minha mãe, foi comprando e construindo imóveis. Quase na mesma época, construiu o Cine Serrano e o prédio da esquina da Bento Ferreira dos Santos, onde, no segundo andar, funcionou o São Gotardo Social Clube.
Relembro emocionado que ele recebeu uma homenagem fantástica de um simples morador desta São Gotardo que ele tanto amou. Recebendo a notícia de que meu pai havia ido se encontrar com os seus nos verdes campos do Senhor, um morador anônimo fincou uma estaca na esquina de onde morava e decretou, escrevendo num pedaço de madeira, esta rua passa a se chamar Rua Clarimundo Alves Soares! Eu gostaria muito de conhecê-lo, abraçá-lo e expressar a gratidão de nossa família. Acho que ninguém mais teve uma homenagem tão grande e sincera e acredito que o Poder Público Municipal não terá a ousadia de mudar isso.
Passo a palavra para o Vette, o Pedro do Zé do Lino e para os prof. Oswaldo e Sérgio Bueno.
Luiz Sérgio Soares – 22.03.2024 – com a colaboração do Marcinho.
29 de novembro de 2022. 17h56min. - Clarimundo Soares (augusto.vette)
... Pensando nisso recordei de episódios da juventude que marcaram profundamente aquela época, proporcionados por diversos cidadãos que impulsionaram o progresso de S. Gotardo.
Um deles foi o sr. Clarimundo Soares, que como pai de família, como comerciante e como empresário primou pelo exemplo de respeito e correção; abastecia a cidade com alimentos para o corpo e para alma – comida para o físico e sonhos para a alma.
Junto com o sr. José Prados divertiu a cidade diariamente em seu Cinema com filmes e notícias vindas de longe, numa época em que não havia televisão e mais que tudo com o Clube Social que uniu e encantou toda nossa geração com horas dançantes e bailes memoráveis, que jamais se apagarão de nossas recordações.
Só quem viveu aquela realidade pode ter ideia da falta que pode nos fazer a privação de algo tão banal hoje, como músicas e notícias de um mundo de famosos, de reis rainhas, de príncipes e princesas que povoavam nossa mente em contos de fada, apenas imaginados por nossa mente ávida de novidades.
Que mistério levou o sr. Clarimundo a preencher este vazio, se não a sua vontade de conquistar a honra de criar a família com dignidade e contribuir para o progresso da sociedade e a evolução da humanidade?
Interrompo a série de escritos sobre meu pai, mas sigo indiretamente falando dele também. É porque este artigo será publicado em maio, mês das mães.
Começo lembrando de uma celebração em que eu tive a felicidade de acompanhá-la, já bem velhinha, mas lúcida e independente como foi até o fim da vida. Estavam enaltecendo as mulheres até que foram interrompidos pelo Amém, que afirmou: “Acho que mulher não é isso tudo, não...” E ele tinha razão, pois as mulheres são humanas, têm qualidades e defeitos, a maioria dos dias excelentes, mas alguns nem tanto, mas eu não estou aqui para apontar defeitos, especialmente a respeito de minha mãe.
O primeiro agradecimento é extensivo ao meu pai, pois eles nunca travaram suas disputas na frente dos filhos e pudemos crescer na ilusão de que a vida deles fluía sem entreveros.
“Minha mãe não trabalha” era o que a gente dizia das mulheres que não trabalhavam fora, como se administrar uma casa, gerindo 14 ou mais pessoas, acompanhando o crescimento da récua de filhos, fazendo o milagre de um lar funcionar e por mágica nós tínhamos roupa limpa, comida boa, bons resultados na escola, como se isso não fosse trabalhar. Não é verdade, as nossas mães trabalhavam muito. Mamãe, depois de verificar nossos deveres, ainda acompanhava os estudos das moças que, para isso, estavam conosco e ajudavam na lida da casa, não deixando que elas perdessem ano e dando de prêmio o anel e roupa de formatura.
Era uma professora formada, com um nível superior da época, tinha uma excelente memória e grande cultura. Ela cuidava da criação dos filhos e nosso pai da manutenção da família. Eles se comprometeram a dar um diploma a cada filho e cumpriram esse propósito. Pudemos estudar sem trabalhar e ganhávamos um fusquinha na formatura.
Adélia Caetano Fonseca, filha de Francisco Caetano Quito e de Ana Carolina da Fonseca, tinha uma personalidade forte e, como seu noivo disse que para ele era indiferente ela acrescentar seu sobrenome, continuou com o nome de solteira, fato inusitado até hoje.
Cozinhava muito bem e costurava para todos nós. A nossa casa ficou imensamente vazia quando ela nos deixou, mas a saudade já vai se tornando menos dolorosa, virando uma suave e boa lembrança.
Os valores deles nos foram transmitidos mais com o exemplo de vida do que com discursos morais. Meu pai, quando ia a BH alugar os filmes para o Cine Serrano, voltava trazendo os romances de sucesso na época, que ela lia depois que os filhos iam dormir. Lembro-me especialmente de dois deles: “Como era verde meu vale” e “Sepultando os meus mortos”. Além disso, ela gostava de poesia e de bons discursos, pelos quais elogiava, por exemplo, o Itagiba Melo e o Mundinho Mendes. Repetia parte do discurso do Dr. Sebastião Montandon Pereira, no RJ, no féretro de João Pessoa: “Homens como ele deveriam ser enterrados de pé, de pé como sempre viveram.” Numa excursão pelo Nordeste, foi a única a saber e cantar o Hino da Paraíba.
Era rígida em nossa educação e uma leoa para nos defender. Cheia de muitas certezas, nunca teve a sua fé abalada e participou bastante do Apostolado da Oração.
Teve uma vida ativa e intensa. Na etapa final de sua caminhada, descreveu as atividades de cada dia da semana, registrando que a quarta era seu dia de descanso.
Guardo comigo um livrão em que ela colava as poesias e pensamentos que recortava dos jornais e revistas, cuja foto ilustra este texto, e que pretendo doar para a biblioteca 'daqui”.
Parafraseava Ataulfo Alves e dizia: “Eu era feliz e sabia!” Deve ter chegado no céu, dizendo: “Eu fui feliz e sabia!”
Ps: não posso deixar de fazer, também, a merecida homenagem para Dodora Gontijo, minha esposa, e para minha sogra, Oneida.
Luiz Sérgio – 01.03.2024 – coautoria do Marcinho
Afirmar que o próprio pai foi um homem sábio e bom contraria a mineirice e precisa ser justificado, o que tentarei fazer neste artigo. Primeiro, porque é que eu penso e moderar esta palavra seria faltar com a verdade. Depois, porque a sabedoria dele se estende a outros conterrâneos, como o Jaime Resende, meu sogro, Joanico Resende, Chico Moço, Divino Lopes, Mundinho Alves, Tonico Borges e muitos outros a serem acrescentados pelos leitores. Vejamos o que eles têm em comum.
Meu pai foi um comerciante de muito sucesso e continuou sendo uma pessoa simples, atenciosa e amável, dando atenção a todos que o procuravam, como se tivesse todo o tempo do mundo, e se interessando pelo que a outra pessoa lhe dizia. Era absolutamente discreto, ouvia e só dava uma opinião se isso fosse solicitado. Esta é uma grande e escassa qualidade de algum tempo para cá. Foi o que levou o saudoso teólogo, padre João Batista Libânio, reservar um dia da semana para ouvir seus paroquianos de Vespasiano, apenas ouvi-los, sem qualquer julgamento. E denominou esta ação de escutatória! O armazém do Clarimundo era um lugar de escutatória...
Ao longo da vida todos temos dissabores, experiências negativas e contato com mesquinharias, levamos facadas nas costas, sofremos injustiças e meu pai não foi uma exceção. O diferente é que não perdeu a alegria de viver e de conviver, nem buscou vingança ou ficou difamando quem agiu mal contra ele. Lembrei-me agora de Lucas 2,19 e 2,51, passagens segundo as quais Maria, mãe de Jesus, guardava o que ia vendo e vivenciando no coração e meditava sobre elas. Meu testemunho é que foi isso que meu pai vivenciou e permitiu a ele chegar ao fim da vida com alegria, achando sempre que todo mundo morria “muito novo”, mesmo que já tivesse 60, 70 anos ou mais.
E por falar em morte, nenhum conterrâneo deixou de ter seu acompanhamento quando seu cortejo passava em frente ao armazém e seguia pela avenida Rio Branco em direção à última morada. Todos, conhecidos ou não, de qualquer classe social, tiveram a solidariedade de sua presença no momento final de sua caminhada por aqui. Na noite em que ele se deitou pela última vez estava com tudo arrumado para ir, na manhã seguinte, ao Rio Paranaíba despedir-se do Juca da Farmácia. Foi compassivo e misericordioso.
“Lovable” é um termo da língua inglesa de que eu gosto muito e que não tem uma tradução simples em Português, mas que se aplica a muitas pessoas que a gente conhece. É aquela turma de quem a gente gosta de graça, por nada, que naturalmente chama a amizade dos outros e eu posso afirmar que meu pai foi desse tipo, pois a quase totalidade das pessoas fala bem dele para nós, o que nos enche de alegria e ternura.
Quando eu retornava a São Gotardo, tinha além da alegria de rever amigos, a felicidade de ouvir os causos novos que papai, seo Jaime e João Bosco guardavam para me contar. Repasso três para vocês.
Seo Jaime estava sentado no banco do jardim com amigos, quando chegou um candidato a vereador, mostrando uma lista com 180 nomes, pediu a ele que votasse no amigo dele, candidato, o Tonico das Botas, pois ele já estava eleito e se elegeria só com os votos da Matutina. Com a calma habitual, meu sogro falou que ia votar nele, mas mudaria de voto a seu pedido. Resultado: o Tonico foi eleito e o dono da lista teve 13 votos. Detalhe: o povo da Matutina não votava mais em São Gotardo!
Noutra ocasião, chegou ao armazém um freguês bonitão que tinha levado um tiro na coxa esquerda, reclamando da injustiça: - “Veja, sô Clarimundo, eu estava lá na estrada pruma fazendinha, no carro, aconselhando a jovem esposa daquele infeliz a voltar para ele, quando ele sem dizer nada, atirou em mim, pela janela do meu fusquinha.” Papai estava pensando no que dizer, quando um dos funcionários falou:
“- Que desperdício de bala, né¿ Ele podia ter te dado uma chifrada...” E foi uma gargalhada só e a vida seguia em frente, engordando o nosso folclore com histórias que iam sendo repassadas, aumentadas e recriadas.
Há inúmeros casos de velórios, mas a melhor ouvi do Tião Franco. Eles estavam num velório, que na época era na casa do falecido e entrava madrugada a dentro. Passada a meia noite foram raleando as bebidas e os tira-gostos e os amigos presentes começaram a recolher dinheiro para alguém ir buscar o combustível para a turma da madrugada, até que a viúva quis contribuir e o XYZ, que estava coletando, recusou: “A senhora não, a senhora já entrou com o defunto!”
Lembro-me, ainda, da bondade do Téo (Antônio Teóphilo) e do Vicente Teixeira, da alegria do Lipran e do Tião Franco, da espirituosidade do Hugo do João Lopes, do Nélson Bico Doce, do Julinho do Zé do Lino e do Tarcísio Melo, da espiritualidade do Luzardo. Quem cita comete sempre o pecado da omissão e eu conto com a boa vontade dos leitores, escrevam indicando outros conterrâneos e assumo o compromisso de mencioná-los em publicação futura, numa das quais pretendo falar dos apelidos e dos nomes inusitados do Arraial da Confusão.
Se são perfumadas as mãos que espalham flores e abençoadas os mensageiros da paz, todas estas pessoas mencionadas neste texto merecem as bençãos dos céus e o nosso agradecimento. Acho que consegui justificar os adjetivos do título destes textos.
Luiz Sérgio Soares – 20.02.2024 – com a colaboração do Marcinho em todos os artigos.
Cachoeira do Salto – Foto de Thiago A Timao
O trabalho para meu pai, Clarimundo Soares, sempre foi prazeroso e seu armazém era um lugar alegre. Ele empregava, a pedido da mãe viúva ou dos pais, jovens a quem transmitia seu exemplo e a quem ajudava quando chegava a hora de iniciar uma nova etapa nas suas vidas. A cultura da época admitia o trabalho dos jovens e isso até hoje é defendido pelos mais velhos, que são contra as leis trabalhistas que proíbem o trabalho infantil e restringem o trabalho dos adolescentes.
Zé Moreira falou um dia para um de nossos irmãos: “Aquilo lá não era um emprego, era uma escola.” E o Mauro disse com um certo exagero de gratidão: “Tudo o que eu tenho, devo ao sr. Clarimundo.” Essas e outras amizades foram um grande legado para nós, seus filhos.
Eles sabiam, por exemplo, na época da venda, que ele atendia os fazendeiros de madrugada para abastecer seus veículos na bomba que ficava no meio da avenida, nas madrugadas extremamente frias da nossa terra naquela época. O freguês buzinava e ele saía da cama para atender o cliente.
Marcante também nessa época o pátio para os cavalos dos fazendeiros que vinham em grande número para a missa das dez, vendiam seus produtos e compravam o que não produziam nas fazendas, se encontravam com os conhecidos e agitavam o local com a prosa animada.
O Antônio da Luca era um caso especial e falarei dele daqui a pouco, mas foi um dos que o meu pai dava um emprego e ajudava sem humilhar: arrumava pequenas tarefas para o Zé Mudo, tais como descarregar um caminhão de lenha, o Paieta era bom entregador de compras mesmo com uma mão só e o Mudo recebia e devolvia as latas com os rolos de filme na rodoviária e nunca errou ao longo dos anos.
O Antônio da Luca carregava uma sacola de papel com uns papéis que “provavam” ser ele herdeiro das terras da metade oriental do Rio São Francisco e afirmava com convicção que era também dono de tudo que o papai tinha e que só não tomava por causa da estima que tinha por minha mãe e por seus filhos. De tempo em tempo, quando o movimento estava fraco ou o empregado estava mais agitado, papai oferecia a ele 5 mil réis para por fogo nos papeis e o Antônio da Luca pulava para a calçada e o ameaçava, xingava muito e ia falar com minha mãe, que o acalmava.
Depois que o Tõe Quito terminou o Tiro de Guerra em Araxá deu para o xará sua farda e batebute, que ele orgulhosamente usava nos feriados nacionais e usou quando impediu a TFP de entrar na cidade com seus estandartes vermelhos, porque disseram a ele que eram os comunistas chegando.
O Hugo do João Lopes o acompanhava e quando ele entrava no bar da rodoviária o chamava pelo telefone do Bar do Totoe Bernardo, dizendo ser o General Geisel e ele ao atender ficava em posição de sentido e dizia: “Pois não, senhor Presidente..., entendido, transmitirei ao juiz ou ao prefeito suas determinações” numa longa conversa fantasiosa e complicada, quando o general presidente determinava, por exemplo, que localizasse o Epicentro da Silva, perigoso espião...
Antônio de Oliveira, o Antônio da Luca, é hoje nome de importante rua no Cargueiro-Bairro N. Sra de Fátima, e deixou duas casas de herança para seus filhos. Jogava no gol e era quem tirava as traves colocadas no campo de aviação, local dos jogos na época, antes da construção do estádio Olavo Bilac de Resende, e as guardava em casa. Num jogo comemorativo, com antigos jogadores, seu beque marcou propositadamente um gol contra e ele saiu atrás dele para bater; depois, pegou um pênalti e o juiz repetiu a cobrança e ele não conseguiu defender novamente, tendo que suportar as gozações dos que estavam atrás do gol.
Eu li nalgum lugar que os “loucos” das cidades pequenas são tão queridos porque eles permitem aos adultos brincar. Pura verdade.
Presto finalmente a homenagem de nossa família ao Antônio e ao Adélio Dias que estiveram com meu pai até o último dia em que ele trabalhou e que eram mais que amigos, tanto que, quando o bom e dedicado Antônio faleceu, seu velório foi anunciado como sendo da grande figura humana conhecida como “Antônio do Clarimundo”.