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    Quarta, 27 Março 2024 21:06

    Meu pai, um homem sábio e bom (2 de 4)

    Escrito por Luiz Sérgio

    O trabalho para meu pai, Clarimundo Soares, sempre foi prazeroso e seu armazém era um lugar alegre. Ele empregava, a pedido da mãe viúva ou dos pais, jovens a quem transmitia seu exemplo e a quem ajudava quando chegava a hora de iniciar uma nova etapa nas suas vidas. A cultura da época admitia o trabalho dos jovens e isso até hoje é defendido pelos mais velhos, que são contra as leis trabalhistas que proíbem o trabalho infantil e restringem o trabalho dos adolescentes.

    Zé Moreira falou um dia para um de nossos irmãos: “Aquilo lá não era um emprego, era uma escola.” E o Mauro disse com um certo exagero de gratidão: “Tudo o que eu tenho, devo ao sr. Clarimundo.” Essas e outras amizades foram um grande legado para nós, seus filhos.

    Eles sabiam, por exemplo, na época da venda, que ele atendia os fazendeiros de madrugada para abastecer seus veículos na bomba que ficava no meio da avenida, nas madrugadas extremamente frias da nossa terra naquela época. O freguês buzinava e ele saía da cama para atender o cliente.

    Marcante também nessa época o pátio para os cavalos dos fazendeiros que vinham em grande número para a missa das dez, vendiam seus produtos e compravam o que não produziam nas fazendas, se encontravam com os conhecidos e agitavam o local com a prosa animada.

    O Antônio da Luca era um caso especial e falarei dele daqui a pouco, mas foi um dos que o meu pai dava um emprego e ajudava sem humilhar: arrumava pequenas tarefas para o Zé Mudo, tais como descarregar um caminhão de lenha, o Paieta era bom entregador de compras mesmo com uma mão só e o Mudo recebia e devolvia as latas com os rolos de filme na rodoviária e nunca errou ao longo dos anos.

    O Antônio da Luca carregava uma sacola de papel com uns papéis que “provavam” ser ele herdeiro das terras da metade oriental do Rio São Francisco e afirmava com convicção que era também dono de tudo que o papai tinha e que só não tomava por causa da estima que tinha por minha mãe e por seus filhos. De tempo em tempo, quando o movimento estava fraco ou o empregado estava mais agitado, papai oferecia a ele 5 mil réis para por fogo nos papeis e o Antônio da Luca pulava para a calçada e o ameaçava, xingava muito e ia falar com minha mãe, que o acalmava.

    Depois que o Tõe Quito terminou o Tiro de Guerra em Araxá deu para o xará sua farda e batebute, que ele orgulhosamente usava nos feriados nacionais e usou quando impediu a TFP de entrar na cidade com seus estandartes vermelhos, porque disseram a ele que eram os comunistas chegando.

    O Hugo do João Lopes o acompanhava e quando ele entrava no bar da rodoviária o chamava pelo telefone do Bar do Totoe Bernardo, dizendo ser o General Geisel e ele ao atender ficava em posição de sentido e dizia: “Pois não, senhor Presidente..., entendido, transmitirei ao juiz ou ao prefeito suas determinações” numa longa conversa fantasiosa e complicada, quando o general presidente determinava, por exemplo, que localizasse o Epicentro da Silva, perigoso espião...

    Antônio de Oliveira, o Antônio da Luca, é hoje nome de importante rua no Cargueiro-Bairro N. Sra de Fátima, e deixou duas casas de herança para seus filhos. Jogava no gol e era quem tirava as traves colocadas no campo de aviação, local dos jogos na época, antes da construção do estádio Olavo Bilac de Resende, e as guardava em casa. Num jogo comemorativo, com antigos jogadores, seu beque marcou propositadamente um gol contra e ele saiu atrás dele para bater; depois, pegou um pênalti e o juiz repetiu a cobrança e ele não conseguiu defender novamente, tendo que suportar as gozações dos que estavam atrás do gol.

    Eu li nalgum lugar que os “loucos” das cidades pequenas são tão queridos porque eles permitem aos adultos brincar. Pura verdade.

    Presto finalmente a homenagem de nossa família ao Antônio e ao Adélio Dias que estiveram com meu pai até o último dia em que ele trabalhou e que eram mais que amigos, tanto que, quando o bom e dedicado Antônio faleceu, seu velório foi anunciado como sendo da grande figura humana conhecida como “Antônio do Clarimundo”.

     

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